segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Como amar (ou odiar) Machado de Assis

Este texto é especialmente para professores que trabalham literatura no ensino médio, mas também é para você, que já foi aluno de professores infelizes que cometeram a insanidade de fazê-lo acreditar que "Machado de Assis é um chato", simplesmente por ignorância ou abordagem equivocada. Aqui eu explico como é possível reverter isso. Todo mundo ganha! Eu garanto: ler Machado de Assis sempre será melhor do que não ler Machado de Assis.

Para quem não sabe, eis uma revelação (que nunca foi tão segredo assim em minha vida): eu odiava o Machado de Assis [música de suspense, "close" e pausa para intervalo]. Hoje eu faço mestrado em Literatura Comparada e, um dos autores que pesquiso é justamente o "Machadão" (por escolha minha e não por imposição do orientador). Quando fui reapresentada ao "bruxo do Cosme Velho" no contexto e na hora certos, eu simplesmente me apaixonei e não larguei mais dele.

Ele é o nosso maior patrimônio literário. Um gênio da palavra. Mas, assim como 90% dos brasileiros, eu fui obrigada a ler Dom Casmurro no colégio. Uma heresia, na minha opinião, que alguns docentes cometem até hoje. Já estive dos dois lados: fui aluna, como todo mundo nesta vida, mas também fui professora de literatura no ensino médio, e afirmo: submeter adolescentes de 15 anos a iniciar as leituras Machado de Assis a partir de seu romance mais polêmico é um crime! Nessa fase, eu jamais consegui passar da primeira metade do livro... dormia a cada 10 páginas.

#Primeiramente: Machado não é escritor para leitor precoce, a maioria de seus textos exigem uma certa maturidade e um conhecimento prévio de outros clássicos da literatura, uma vez que ele recorre frequentemente à intertextualidade para explicar determinadas situações da narrativa. Ao longo do romance Dom Casmurro, o leitor depara-se com referências a várias obras: A Divina Comédia, de Dante Aliguieri; a elementos da Mitologia Grega; à Bíblia Sagrada; Otelo, dentre outras. Para quem leu, no máximo, Harry Potter (e olhe lá!), é um estupro literário e linguístico!

Aos professores, faço uma súplica: MACHADO DE ASSIS NÃO É LITERATURA INFANTO-JUVENIL, então, POR FAVOR, parem de assassiná-lo! Ao obrigar pseudocrianças a ler seus romances, vocês matam o que há de melhor na nossa Literatura. Não cometam "machadicídio"!

A linguagem machadiana, além de não trazer um português contemporâneo, pois é do século 19, é bastante sofisticada, e o tema dos romances, geralmente é denso. Dom Casmurro trata do ciúme e menciona uma possível traição; em vários momentos, é feita uma análise psicopatológica das personagens, o que exige um nível de reflexão mais frequente em leitores maduros.

O mesmo raciocínio aplica-se a Memórias Póstumas de Brás Cubas (como simulou um amigo meu certa vez, fazendo as vezes de aluno do ensino médio: "'Memórias' até sei o que é... 'póstumas', não; e 'Brás Cubas' eu não sei quem é... então, não quero ler! Fim.") e a qualquer outro romance realista do gênio, pois um leitor desatento deixará passar até o que há de mais precioso em todo o conjunto da obra: a ironia machadiana ("Marcela amou-me durante 15 meses e 11 contos de réis").

Então, a menos que teu objetivo seja, de fato, traumatizar a molecada e fazê-los odiar Machado de Assis para todo o sempre (ou até que alguns entrem em algum curso de Letras e deparem-se com um professor de literatura brasileira ABENÇOADO e que consiga mudar essa triste realidade).

_ Mas, Pati, como fazer se esses romances ainda estão nas listas de leituras obrigatórias dos vestibulares mais importantes do país?
Honestamente, eu acho que isso está mudando já, mas enquanto não muda totalmente, podemos dar um "jeitinho". Bom, eu já dei a receita de como não fazer. E é bem fácil (até mesmo se você for um professor medíocre que nunca leu Machado, mas finge que leu para não ficar feio), basta obrigar a leitura dos romances, fingir que o tema central de Dom Casmurro é o mistério "traiu ou não traiu?", pede um resumo idiota e dá só "visto" para todo mundo, faz perguntas óbvias na prova, fica chovendo no molhado, você finge que ensina, os alunos fingem que aprendem e, no final do mês, o teu salário cai na tua conta da mesma forma, sem um esforço extra. Essa é a via mais rápida, menos dolorida e, por isso, a preferida pela maioria dos "professores de literatura".

Mas se você realmente quer fazer a diferença na vida desses "serumaninhos", ou se você foi vítima de "machadicídio" e quer ressuscitar esse autor na sua biblioteca pessoal, faça esse trabalho mais lentamente e comece pelos contos do escritor. Dedique-se a conhecer os contos. Dedique-se a conhecer a obra de Machado de Assis. Machado está muito além de Dom Casmurro e Memórias Póstumas. Eu arriscaria dizer (e não estou sozinha nisso, vários críticos literários renomados concordam comigo) que as verdadeiras obras-primas do nosso mestre estão em seus contos.

Mas é uma seleção que dá trabalho, afinal, são mais de 200 títulos. Comece pelos clássicos: A Carteira, A Cartomante, Pai contra Mãe, O Espelho. Somente quando sentir que a linguagem não é mais tediosa, parta para O Alienista. Explore bem esse último, pois é um conto longo e muito rico. Somente depois disso, e somente se sentir que não gerará trauma literário, você poderá partir para Dom Casmurro e Memórias Póstumas.

Mas eu recomendo ir com cautela. Eu somente indicaria esses romances para quem realmente gosta de ler e/ou já passou ou está próximo dos 30 anos, pois aproveitará e apreciará a leitura na sua totalidade.

Sigam este caminho e apaixonem-se comigo! Sejam bem-vindos ao universo machadiano!

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